Sociedade do Risco e Democratização da Ciência: uma análise da tecnologia 5G

André Rubião
Doutor em Ciência Política (Universidade Paris 8)
Professor na Faculdade de Direito Milton Campos

Filipe Nunes
Biólogo, Membro da Comissão Técnica de Meio Ambiente do Conselho Regional de
Biologia (4ª Região)

Resumo
Este artigo está divido em sete partes. Começamos mostrando a formação do conceito de independência do campo científico, em especial a partir dos trabalhos de Robert Merton (I), para depois revelar a maneira como Thomas Kuhn (II) e Bruno Latour (III) sinalizaram uma ruptura com a ideia de pureza epistemológica. Na sequência, analisamos o conceito de democratização da ciência (IV) e mostramos algumas experiências contemporâneas envolvendo minipúblicos (V). Por fim, apresentamos uma reflexão sobre os riscos ligados à quinta geração da telefonia móvel (VI), revelando conflitos de interesse dos órgãos reguladores e a necessidade de mais transparência e legitimidade nas decisões sobre o futuro dessa tecnologia (VII).

Palavras-chave
Sociedade do Risco; Democratização da Ciência; Tecnologia 5G

Abstract
This article is divided into seven parts. We start by showing the formation of the concept of independence in the scientific field, especially from the works of Robert Merton (I), and then reveal the way in which Thomas Kuhn (II) and Bruno Latour (III) signaled a rupture with the idea of epistemological purity. Then, we analyze the concept of democratization of science (IV) and show some contemporary experiences involving mini-publics (V). Finally, we present a reflection on the risks associated with the fifth generation of mobile telephony (VI), revealing conflicts of interest from regulatory bodies and the need for more transparency and legitimacy in decisions about the future of this technology (VII).

Key words
Risk Society; Democratization of Science; 5G technology

Introdução
Eu me dei conta que, face à realidade, minha história era tão anódina quanto um cartão postal de férias.

John le Carré, posfácio à edição francesa de The Constant Gardner, p. 518.

Num artigo polêmico, Richard Horton, editor-chefe de uma das mais prestigiosas revistas cientificas, a The Lancet, afirmou que “grande parte da literatura científica, talvez a metade, seja simplesmente falsa”. Conflitos de interesse, obsessão por tendências em voga, análises inválidas, estes foram alguns dos argumentos que, segundo o autor, fizeram com que “a ciência desse um giro no caminho da escuridão” (HORTON, 2015, p. 1380).

No contexto atual de pandemia (SARS-CoV-2), essa declaração merece uma reflexão ainda mais aprofundada. Não somente observamos as autoridades reivindicarem o campo científico para tomar decisões, como a frase “nunca precisamos tanto da ciência” se tornou um lugar-comum nos meios de comunicação, o epíteto que simboliza a esperança de uma geração em confinamento. Mas será que podemos confiar nesse “caráter demiúrgico” da ciência? Ou estaria esse campo, como indica a afirmação de Horton, contaminado pelo “mundo dos sentidos”?

As respostas a essas perguntas se tornam cada vez mais urgentes. Afinal, como sugeriu Ulrich Beck, ainda nos anos 1980, vivemos uma transição paradigmática, onde a desigualdade deixa de ser a principal questão da teoria social, sendo substituída pela preocupação com o risco gerado pelo progresso tecnológico: o “eu tenho fome”, aos poucos, dá lugar ao “eu tenho medo”. Para Beck, trata-se de um momento singular da história: ao contrário de todas as épocas que a precederam, a sociedade do risco se caracteriza antes de tudo por uma falta ou a impossibilidade de associar as situações de ameaça a causas externas (o imigrante, o judeu, o regime político). Diferente de todas as culturas e todas as fases de evolução anterior, a sociedade é hoje confrontada com ela mesma (BECK, 2001).

A própria pandemia parece não fugir dessa lógica. Contrariando a narrativa de mutação do vírus, a partir de morcegos no Mercado de Wuhan, diversos cientistas, como o prêmio Nobel de medicina Luc Montagnier, têm chamado a atenção para algumas caraterísticas artificiais do SARS-CoV-2, que só podem ser associadas à manipulação do homem (NIKEL, 2020; DEFRANOUX; COQUAZ; GOUTHIÈRE, 2020). Essa suspeita ganhou ainda mais fôlego após uma reportagem do Daily Mail revelar que os EUA enviaram US$ 3,7 milhões de dólares ao Instituto Wuhan de Virologia, antes do surgimento da pandemia, para financiar o desenvolvimento de pesquisas envolvendo o coronavírus, com a captura de morcegos em cavernas da província de Yunnan, no sudoeste da China (OWEN, 2020).

Mas o que fazer diante das ameaças dessa sociedade do risco? Como fugir das armadilhas do progresso tecnológico? O próprio Beck, que escreveu seu livro à época do acidente nuclear de Chernobyl, indicava o caminho da “reflexividade”, no sentido de uma mudança de foco: o ponto central deixa de ser o objeto da pesquisa cientifica, passando a ser um questionamento sobre a maneira de se produzir a ciência, ou seja, diante da impossibilidade de se defender a autonomia de um campo que está ele próprio nos ameaçando, a questão da legitimidade das escolhas se torna fundamental (BECK, 2001).

Muito além da COVID-19, é preciso chamar a atenção para um outro cenário de risco que se revela, neste exato momento, com a efetivação da quinta geração da telefonia móvel (5G). Enquanto o mundo se digladia com as ameaças do vírus, leilões são realizados, torres são instaladas, testes são efetuados; e diversos cientistas, espalhados pelo mundo, alertam sobre os malefícios à saúde e os conflitos de interesse que regem os órgãos responsáveis pelo aval científico dessa tecnologia que promete revolucionar a internet das coisas.

Não se trata de resgatar o neoludismo (movimento filosófico do século XIX que atacou a ideia de progresso), mas alguns números da crítica que envolve a questão da 5G chamam a atenção: um relatório organizado por 29 cientistas reuniu quase 2.000 estudos que apontam os efeitos perversos das ondas eletromagnéticas para a saúde humana (www.bioinitiative.org) e um pedido assinado por 400 médicos e cientistas solicitou uma moratória de implementação da 5G, com base no principio da precaução, uma vez que o grau de exposição às ondas eletromagnéticas dessa nova tecnologia será muito maior (www.5gappeal.eu). Em face desse cenário, uma pergunta surge de forma inexorável: estaríamos diante de um voo de Ícaro, ignorando as chances de queimar as asas com a proximidade do sol?

Nas últimas décadas, a sociologia da ciência vem mostrando que é possível lidar com as questões referentes aos riscos do progresso de outra forma. Como mostraram Callon, Lascumes e Barthes (2001), é preciso se distanciar do mito de um campo científico limitado aos “sagrados” e enxergar as vantagens de colocar em cena os “profanos”. É nesse sentido que pretendemos mostrar, com base na metodologia de reconstrução de processos sociais (MAY, 2004), algumas rupturas teóricas e empíricas que vêm permitindo esse “salto gestáltico”. De que maneira é possível sair da concepção
de uma “autonomia” para um processo de “democratização da ciência”? Qual poderia ser o papel dos cidadãos diante da necessidade de trazer mais legitimidade para os processos de decisão referentes à 5G?

Este artigo está divido em sete partes. Começamos mostrando a formação do conceito de independência do campo científico, em especial a partir dos trabalhos de Robert Merton (I), para depois revelar a maneira como Thomas Kuhn (II) e Bruno Latour (III) sinalizaram uma ruptura com a ideia de pureza epistemológica. Na sequência, analisamos o conceito de democratização da ciência (IV) e mostramos algumas experiências contemporâneas envolvendo minipúblicos (V). Por fim, apresentamos uma reflexão sobre os riscos ligados à quinta geração da telefonia móvel (VI), revelando
conflitos de interesse dos órgãos reguladores e a necessidade de mais transparência e legitimidade nas decisões sobre o futuro dessa tecnologia (VII).

1. Robert Merton e a “estrutura normativa da ciência”

O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim.

Auguste Comte, fórmula clássica do positivismo, gravada no tumba de Auguste Comte, no cemitério Père-Lachaise.

A passagem que inspirou o slogan da bandeira brasileira representa toda a confiança epistemológica de uma época. Afinal, “ordem e progresso” é sinônimo de algo estável, controlado, que segue um caminho fixo, na direção de um patamar superior. Essa era a visão de Comte, cuja crença num estágio científico da humanidade deu origem ao chamado “pensamento positivista”.

O termo, na verdade, já vinha sendo utilizado por outros pensadores. Na enciclopédia de Diderot “positivo” denominava um fato; e, para Saint-Simon, a “ciência positiva” era a ciência moderna, desde de Bacon, também fundada em evidências
(GRANGE; LE ROU, 2003). Mas foi Comte, um pouco mais tarde, no seu famoso Curso de filosofia positiva, que popularizou o termo, levando a confiança epistemológica moderna para um outro patamar.

Essa consolidação trouxe mudanças importantes. Para Dominique Pestre (2001), foi a partir daí que houve uma “essencialização” da ciência, elevada como “categoria geral”, dentro da perspectiva de um novo discurso normativo e ontológico, que fez da “pureza cientifica” a matriz de todas as coisas.

O último grande herdeiro dessa confiança epistemológica foi Robert Merton, considerado o “pai da sociologia da ciência” (DUBOIS, 1999). Se Comte inovou ao defender o estudo da organização e do funcionamento da sociedade e das leis fundamentais que regem as relações humanas e as instituições, Merton foi o primeiro a dar uma atenção particular ao trabalho concreto dos pesquisadores, à estruturação das comunidades científicas e às normas que guiam o conjunto da ciência.

No seu trabalho inaugural, Science, Technology in Seventeenth-Century England, Merton investigou a emergência da ciência e da técnica na Inglaterra do século XVII, bem como suas consequências para a sociedade. De inspiração weberiana, sua tese defendia a ideia de que a institucionalização da ciência inglesa foi o fator preponderante para o salto do crescimento científico do país à época. Tendo a Royal Society como exemplo, Merton constatou que a ciência era governada por normas e valores dotados de uma especificidade e que, para ela se desenvolver, suas normas e valores deveriam ser apoiadas pelo conjunto da sociedade, além de atuar de forma ordenada, dentro de uma comunidade própria (BUSINO, 1998).

Para ele, a ciência tem um ethos específico e deve ser vista como um subsistema autônomo no seio da sociedade, guiado por quatro regras fundamentais: i) universalismo (definições metodológicas precisas, ou seja, o que é e o que não é ciência); comunalismo (pesquisas que visem o interesse da coletividade); iii) desinteresse (evitar vantagens extra-científicas, por motivações econômicas ou conflitos de interesse); ceticismo organizado (os resultados devem ser submetidos a um exame crítico e podem sempre ser revistos) (MERTON, 1973).

O diagnóstico de Merton era de confiança e de aderência do campo a essas quatro regras fundamentais, tendo como resultado uma racionalidade científica de qualidade, expressa pela “república dos sábios”. Trata-se, sem dúvidas, da consolidação da Ciência (com “C”), que serviu de base para a organização da comunidade científica ao longo do século XX, e que até hoje permanece no imaginário social. Mas será que essa “estrutura normativa” iria durar?

2. Thomas Kuhn e as “revoluções paradigmáticas”

A revolução para mim é uma espécie de mudança, envolvendo certo tipo de reconstrução dos compromissos de grupo. Mas não
necessita ser uma grande mudança, nem precisa parecer revolucionária para os pesquisadores que não participam da comunidade, composta talvez de menos de vinte e cinco pessoas.

Thoma Kuhn, pósfácio à terceira edição, The Structure of Scientific Revolutions (1969, p. 180).

É verdade que Kuhn não foi nem o primeiro a refutar o conceito tradicional de conhecimento científico como puramente objetivo, nem o primeiro a mobilizar a história da ciência para mostrar os fatores sociais que compunham o universo cognitivo. No entanto, seu conceito de “paradigma” acabou se tornando de tal forma emblemático, que hoje ele é considerado como o fundador de ambas essas perspectivas (epistemológica e histórica) na reflexão sobre a ciência.

O que é um “paradigma”? Para Kuhn, trata-se de um conjunto de leis, de teorias, de aplicações e de dispositivos experimentais, reunidos por um grupo de pesquisadores, que faz nascer tradições particulares no universo da ciência. Esta é divida em “ciência normal” (quando há um consenso de paradigma) e “ciência revolucionaria” (quando há
contradições internas, gerando diferentes formas de paradigmas). O exemplo clássico de Kuhn é o esquema ptolomaico do universo, que prevaleceu durante séculos, até ser refutado por observações astronômicas e pela teoria heliocêntrica copernicana do sistema solar (KUHN, 1969).

Partindo dessa tensão entre tradição e inovação, a grande novidade de Kuhn foi ter chamado a atenção para outros fatores – não apenas os cognitivos – que compunham os paradigmas. Na verdade, Kuhn não subestima os fatores objetivos (não se trata de relativismo), mas ele chama a atenção para o processo de socialização dos sábios, ou seja, como os fatores culturais, econômicos, psicológicos e biográficos também interferem na definição do paradigma, cuja validade gira em torno de consensos (BUSINO, 1998).

Essa abordagem “realista” de Kuhn vai marcar uma ruptura tanto na filosofia como na sociologia da ciência. A “estrutura normativa” de Merton (e até mesmo a “falseabilidade” de Popper) não levava em conta essa perspectiva psicológica e sociológica da comunidade científica, sobretudo em tempo de “ciência revolucionária”. Para Kuhn, em tempos de “ciência normal”, quando as regras são compartilhadas, sem maiores controvérsias, nós até podemos falar de uma “institucionalização” ou de um “conjunto de conhecimento e práticas de pesquisa”, mas a medida que as divergências
vão surgindo, tornando os paradigmas incomensuráveis, os cientistas podem querer trocar de um “modelo” para outro, sendo essa decisão uma espécie de “conversão religiosa”, já que, além de argumentos lógicos, ela envolve todos aqueles outros fatores (CHALMERS, 1993).

Kuhn abriu a porta para uma série de outros autores que iriam desmistificar o mito da “ciência pura”, advindo da Modernidade. Dentre estes, Paul Feyerabend talvez tenha sido o mais radical. O “dadaísta da epistemologia”, como definiu Dominique Lecourt, foi aquele que atacou todas as regras. “Anything goes”, dizia sua célebre máxima, afinal, para o “anarquismo científico”, o reino do método é o poder dos experts, o poder dos experts é a opressão dos indivíduos, a opressão é a morte da liberdade (LECOURT, 2001).

Mas essa postura iconoclasta de Feyerabend, centrada na filosofia da ciência, não levava em consideração o universo empírico, no sentido de focar o olhar na maneira como a ciência era produzida. Foi preciso esperar ostrabalhos etnológicos de Bruno Latour para questionar de vez a ideia de uma “tribo de sábios”.

3. Bruno Latour e a actor–network theory

Os cientistas costumam ter aversão ao que os não-cientistas dizem sobre a ciência
Jonas Salk, introdução à segunda edição de Laboratory Life, p. 11.

Quando Bruno Latour e Steve Woolgar partiram para o laboratório de Roger Guillemin, para fazer um estudo das atividades científicas, uma reviravolta estava prestes a ocorrer. Durante dois anos, eles acompanharam a equipe especializada em
neuroendocrinologia, observando todo o processo de produção científica: das experiências empíricas à formulação de artigos, passando pelas burocracias internas do laboratório, nada lhes escapava aos olhos.

Pouco tempo depois, quando Laboratory Life foi publicado, a polêmica estava lançada. Como o próprio subtítulo da obra indica – The Construction of Scientific Facts –, Latour e Woolgar (1986), naquilo que já se encontrava de forma latente em Kuhn, faziam da ciência não um conjunto ordenado de regras, à maneira de Merton, mas uma construção social, muito mais próxima de uma estratégia política, envolvendo interesses diversos.

Impulsionado pelo fato de Guillemin ter ganhado o prêmio Nobel de Medicina logo depois da sua publicação, Laboratory Life fez um enorme sucesso, abrindo uma nova linha de pesquisa. Como nos mostra Giovanni Busino (1998, p. 46), nessa perspectiva,

um fato científico não é nem um constato, nem um testemunho, é uma construção elaborada e divulgada num certo espaço, aquele do laboratório e das suas redes de irrigação. As duas propriedades que caracterizam o fato científico – a capacidade de resistir à crítica e a capacidade de interessar ouros atores (colegas, utilizadores) – não lhe pertencem propriamente: elas lhe são atribuídas por redes negociadas e mobilizadas para o construir e para lhe
fornecer um espaço de circulação. Desconstruir um fato, assim, é reconstituir o modo de produção do laboratório e colocar em evidência as redes nas quais ele se situa. Um fato científico não é jamais o resultado de uma decisão racional, emanada de um espírito livre e sem parceiros. Produzido por uma ou várias redes sócio-técnicas, ele é impuro por natureza, composto de elementos heterogêneos e construído de maneira disparatada. Colocando junto os fatores científicos e extra-científicos, as ideologias, as intrigas acadêmicas e os elementos macro-institucionais, a construção do conhecimento científico aparece como um processo pelo qual os cientistas dão um sentido à suas
observações.

Definida como actor–network theory, essa abordagem também iria abrir as portas para uma discussão sobre as decisões no universo da ciência. Afinal, se nós “jamais fomos modernos”, como sugeriu Latour (1991), no sentido de que jamais fizemos a separação entre ciência e política, de que maneira trazer legitimidade para as escolhas?

Acusados de relativistas, em meio à famosa “science wars”2, os partidários da actor–network theory encontraram na democratização da ciência uma de suas principais respostas.

4. A abertura do campo: uma pesquisa ao ar livre

Todas as ciências são ciências sociais.
Boaventura de Sousa Santos, A crítica da razão indolente, vol. 1., p. 89.

Dentre os autores ligados à actor–network theory, Michel Callon foi o que mais se destacou na defesa da democratização da ciência. Para compreender essa ideia, é preciso colocar em evidência aquilo que ele, Lascoumes e Barthes definiram como as “três etapas do processo científico” ou as “três traduções” (CALLON et al., 2001).

Em primeiro lugar, há uma “tradução” do macrocosmo ao microcosmo, ou seja, há uma série de ideias que saem do mundo, em geral, para se confinarem nos laboratórios, nos institutos de pesquisa, nas universidades e em outros lugares onde se produz conhecimento científico. Em segundo lugar, existe uma “tradução” interna nesses lugares, que consiste na formação das palavras, das inscrições, dos modelos analíticos, quando o mundo é reduzido a enunciados que obedecem a formas de racionalidade. Finalmente, a terceira “tradução” consiste no retorno ao mundo, ou seja, esse mesmo conhecimento é lançado, de volta, em forma de ideias, teorias, produtos, tecnologias ou outros objetos, no seio da sociedade.

A “democratização da ciência”, ou seja, a possibilidade de a sociedade discutir se determinada teoria, estrutura, descoberta é ou não pertinente, parece poder acontecer apenas na terceira “tradução”. Mas acontece que a primeira “tradução”, que sempre fora tratada de “ciência pura”, estava repleta de estratégias, de redes, de interesses, que iriam influenciar toda a cadeia das “traduções”. Os autores nos alertam para o seguinte: é na primeira “tradução”, ao contrário do que se imagina, que estão presentes diversos aspectos da nossa “escolha de sociedade”, ou seja, a “composição do coletivo no qual nós vivemos (…), aquilo que os gregos chamavam de organização da Cidade” (CALLON et
al., 2001, p. 102).

Um exemplo que Callon, Lascoumes e Barthes nos fornecem é a série de pesquisas ligadas aos alimentos transgênicos. Diversas investigações, tanto públicas como privadas, são realizadas nesse sentido. A primeira “tradução”, assim, é influenciada por toda uma rede de interesses (interesses econômicos, interesses científicos, interesses dos pesquisadores etc). Mas será somente mais tarde, na terceira “tradução”, que haverá uma discussão, mais ampla, a respeito do uso dessas tecnologias, da sua regulação, da sua aplicabilidade etc. Acontece que essas decisões, a partir da terceira “tradução”, já estão extremamente condicionadas pela primeira. Não cabem mais perguntas do tipo: “será que
nós queremos essas pesquisas?”; ou “será que o dinheiro não seria melhor investido em outros projetos?”

É justamente devido aos riscos da convergência de interesses que Callon, Lascoumes e Barthes defendem uma “democratização da ciência”, em todos os níveis das “traduções”. Mas do que trata, exatamente, essa “democratização”? Em primeiro lugar, eles defendem a presença dos cidadãos “comuns” durante todo o processo científico, constituindo verdadeiros “fóruns híbridos”. Segundo eles, nestes espaços abertos deveriam encontrar-se não somente os especialistas de todas as áreas interessadas, permitindo a criação de um espaço interdisciplinar, mas também os “profanos”, ou seja,
as pessoas comuns, que podem não conhecer nada dos temas em questão, mas que têm interesse, como cidadãos, no conteúdo das decisões (CALLON et al., 2001).

Há diversos exemplos contemporâneos de como esses “fóruns híbridos” criam sinergias, contribuindo para melhorar significativamente o processo científico. Bruno Latour, por exemplo, nos lembra o caso da pesquisa sobre distrofia muscular na França, quando os pacientes que sofriam dessa doença se uniram e criaram uma associação, a Associação Francesa de Miopatias, consultaram diferentes profissionais e administradores, e acabaram criando uma loteria para arrecadar fundos destinados à pesquisa. Com os fundos assim obtidos, foi montado um projeto comum, em que pacientes e cientistas, diante de diferentes caminhos e numerosas variantes, que vão de diagnósticos contraditórios à participação voluntária dos pacientes nos ensaios clínicos, passaram a desenvolver juntos à pesquisa (LATOUR, 1995). Richard Sclove, por seu lado, cita diversos casos em que a participação dos cidadãos foi decisiva para desenhar projetos de pesquisa mais próximos das necessidades dos cidadãos e para melhorar os resultados: num deles, os habitantes de Woburn, no Massachusetts, confrontados com diversos casos de leucemia induzida em crianças, que parecia estar ocorrendo devido ao
lixo tóxico das empresas vizinhas, perante o ceticismo, a indiferença e o imobilismo das autoridades, tomaram a iniciativa de procurar os cientistas da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, e conduziram, junto com estes, investigações epidemiológicas independentes e com metodologias adequadas, cujos resultados influenciaram a
legislação federal sobre os lixos tóxicos (SCLOVE, 1995).

Para Callon, Lascoumes e Barthes, essa forma de se fazer pesquisa (agregando atores e interesses diversos), que eles definem como “pesquisa ao ar livre”, contribui para inteligibilidade da ciência, sobretudo na terceira “tradução”, além de uma legitimidade da mesma, no primeiro momento. A preocupação deles não é condenar a “pesquisa confinada”, mas mostrar como o advento da “pesquisa ao ar livre” só tem a enriquecer o universo científico. Mas a “democratização” não consiste somente nessa abertura do campo ou, para usar um jargão contemporâneo, na consolidação de um “terceiro setor
científico”. Um outro aspecto da “democratização” está ligado às formas de se tomar decisões que envolvam questões tecno-científicas e nada mais ousado, nesse sentido, do que as experiências envolvendo minipúblicos.

V. O uso do sorteio na ciência

É preciso lançar-se, resolutamente, na experimentação. Afinal, quem poderia defender que o statu quo é
satisfatório?
Yves Sintomer, O poder ao povo, p. 180.

Nos dias 21 e 22 junho de 1998, um grupo de 14 cidadãos comuns, selecionados aleatoriamente, se reuniu na Assembleia Nacional da França. O objetivo era que eles dessem sua opinião sobre um assunto polêmico: a liberação de uma variedade de milho geneticamente modificado. Num comunicado à impressa, o governo francês explicava sua iniciativa:

A opinião pública permanece indecisa e parece insuficientemente informada. Se nossos concidadãos parecem prontos a aceitar a engenharia genética para a produção de medicamentos, eles estão reticentes em aceitá-la para a alimentação. Apesar da grande experiência científica no campo da engenharia genética, os cidadãos recusam que as decisões que comprometem o futuro sejam tomadas sem a expressão e a confrontação de todas as opiniões (apud BOY et al., 2000, p. 780).

O procedimento, coordenado por um comitê independente, consistia em três etapas: um estágio de formação sobre os transgênicos, um debate aberto na Assembleia Nacional e uma deliberação do grupo. Boy, Donnet-Kamel e Roqueplo (2000), membros do comitê, nos contam como foi essa “aventura”. Durante o estágio de formação, realizado durante dois fins de semana, foram convidados diversos especialistas – respeitando as diversidades científicas –, para que o grupo de cidadãos, como num curso, ficasse sabendo das principais questões relativas aos transgênicos. Na segunda etapa, realizada na Assembleia Nacional, durante dois dias de sessões abertas, com ampla presença da imprensa, o grupo pôde fazer perguntas a mais de 30 experts, de diversas áreas, para esclarecer todas as suas dúvidas. Finalmente, após mais de dez horas de debate, o grupo se reuniu, a portas fechadas, para deliberar e redigir um documento final, no qual constou um pedido de moratória na introdução do milho transgênico para o consumo, uma série de exigências de precauções que deveriam ser tomadas em diversos assuntos que tocam os transgênicos e a necessidade de uma pesquisa eminentemente
pública para escapar dos riscos dos interesses privados.

Ao fazer um balanço geral do evento, Boy, Donnet-Kamel e Roqueplo não deixaram de alertar para algumas dificuldades encontradas pelo grupo e pela organização em geral, mas afirmaram que

a experiência nos demonstrou a que ponto os cidadãos, escolhido no meio de outros de uma forma quase aleatória, são suscetíveis de se instituir num verdadeiro sujeito coletivo capaz de capturar intelectualmente e politicamente uma questão eminentemente complexa (…). Os 14 cidadãos reunidos na conferência manifestaram uma seriedade e uma capacidade de análise que impôs o respeito de todos, tanto dos experts como dos jornalistas (BOY et al., 2000, p. 789).

Essa iniciativa francesa é apenas uma dentre as diversas modalidades de minipúblicos que vêm transformando as democracias contemporâneas. A ideia geral desses procedimentos, que visam reintroduzir o sorteio na política, é constituir uma amostra representativa da sociedade, respeitando critérios de gênero, idade, raça e classe social, para que esses cidadãos, selecionados aleatoriamente, possam deliberar sobre assuntos de interesse público. Das “células de planificação”, de Peter Dienel, passando pelos “júris de cidadãos”, de Ned Crosby, até as “pesquisas deliberativas”, de James Fishkin, são milhares de iniciativas espalhadas pelo mundo, uma verdadeira explosão dos minipúblicos nas democracias (RUBIÃO, 2018).

Como exemplo, podemos citar o orçamento participativo de Berlim, que distribuiu 500 mil euros para que um grupo de cidadãos, metade deles sorteados, pudesse deliberar sobre o destino desse dinheiro (SINTOMER, 2010); a pesquisa deliberativa na Austrália que reuniu 344 pessoas sorteadas no Parlamento para debater sobre a relação entre as populações indígenas e não-indígenas (COOK; POWELL 2003); a seleção de candidatos para concorrer a cargos eletivos, tanto na Grécia (FISHKIN, 2008) como no México (CASTRO, 2018); a reforma constitucional da Irlanda, feita a partir de uma Convenção Constitucional, formada por 33 políticos e 66 cidadãos sorteados (SUITER et al., 2016); a iniciativa do Parlamento dinamarquês, que criou o Danish Board of Technology, órgão formado por cidadãos escolhidos aleatoriamente para avaliar questões tecnológicas e desenvolver o debate público sobre suas implicações (SCLOVE, 1995); sem contar as diversas experiências com políticas públicas na Europa, Ásia e Estados Unidos (REYBROUCK, 2017).

O grande mérito das iniciativas com sorteio é trazer para os espaços de deliberação o cidadão comum, não contaminado pelas redes de interesse. É possível constatar então dois critérios de legitimidade: o primeiro, sociológico, a partir da amostra representativa (que busca resguardar as diferenças sociais entre os indivíduos selecionados); e o segundo, epistemológico, com a formação de uma opinião esclarecida ou de uma “razão comunicativa” (que se difere substancialmente da opinião pública convencional, praticada pelos institutos de pesquisa, na qual os cidadãos consultados não têm tempo para refletir sobre as questões que lhes são colocadas).

Será que a aprovação imediata da tecnologia 5G passaria pelo crivo de um minipúblico?

In dubio pro salute: a polêmica da 5G

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com
suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para proteger medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.
Declaração do Rio, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992.

O princípio da precaução deveria ser uma condição sine qua non da atividade científica. Quando há suspeita de que algo possa provocar risco à saúde humana ou ao meio ambiente, é necessário adotar medidas preventivas, ou seja, deve-se agir com precaução, ainda que as relações de causa e efeito entre essa atividade e os riscos que ela possa gerar não estejam consolidados. Além disso, há uma inversão do ônus da prova. Não se trata de evidenciar a existência de um malefício. Na dúvida, cabe aos proponentes da atividade mostrar que ela não gera dano ambiental (TICKNER, 1999).

O princípio da precaução é principal justificativa de um grupo de 400 médicos e cientistas, de diversos países, que assinou um pedido de moratória da implementação da tecnologia 5G, até que as desconfianças que pairam sobre seus riscos à saúde possam ser esclarecidas (www.5gappeal.eu).

Nesse mesmo sentido, na França, um minipúblico convocado pelo presidente Macron, formado por 150 cidadãos sorteados, denominado Convenção Cidadã, encaminhou um pedido de adiamento dessa nova tecnologia, com base no princípio da
precaução (www.conventioncitoyennepourleclima.fr). Mas quais seriam os receios dessas pessoas e por que os alertas emitidos por elas não estão sendo levados em conta?

Para responder essas perguntas, é preciso entender o que são as ondas eletromagnéticas e quais efeitos elas provocam nos seres humanos. Em meados do século XIX, James Maxwell, através dos experimentos de indução de Michael Faraday, sintetizou o conhecimento de eletricidade e magnetismo em quatro leis, as chamadas equações fundamentais do eletromagnetismo. As cargas elétricas modificam o espaço ao seu redor produzindo um campo elétrico. As cargas elétricas em movimento produzem campos elétricos e magnéticos. A força magnética é responsável pela alteração da direção de movimento das partículas elétricas. As ondas eletromagnéticas são formadas quando um campo elétrico entra em contato com um campo magnético. Estes campos, além de componentes das ondas eletromagnéticas, vibram entre si em direções perpendiculares, transportando energia (GRAÇA, 2012).

As ondas eletromagnéticas estão presentes na natureza ou podem ser criadas artificialmente. Em ambos os casos, é possível perceber os paradoxos da sua interação com os seres humanos. No caso da luz solar, por exemplo, ao mesmo tempo em que ela é uma fonte de obtenção de energia, gerando a síntese de vitamina D na pele, ela pode ocasionar uma variedade de efeitos patológicos, como queimaduras, alterações imunológicas e neoplasias (JUCHEM, 1998). No caso dos raios-X, ao mesmo tempo que são indispensáveis aos diagnósticos médicos e salvam vidas, caso não sejam manipulados de forma adequada, trazem riscos à saúde humana (GRAÇA 2012).

As radiações provenientes das ondas eletromagnéticas podem ser classificadas como ionizantes (que possuem energia suficiente para arrancar elétrons da matéria, produzindo íons livres) e não ionizantes(que não possuem essa capacidade). As radiações ionizantes são largamente utilizadas na medicina (tomografias, radioterapia, raios-X etc.), contudo, conforme vimos, sua exposição prolongada causa danos, justificando protocolos de segurança. Já as radiações não ionizantes (luz infravermelho, micro-ondas, radiofrequência etc.) também estão presentes no nosso cotidiano. Elas apresentam efeitos “térmicos” e “não térmicos”. Os “térmicos” relacionam-se a todos aqueles processos que culminem com o aumento de temperatura nos tecidos biológicos. Já os “não térmicos” seriam causados diretamente pelos campos eletromagnéticos induzidos, sem um aumento localizado ou distribuído de temperatura.

Em termos de risco, a grande questão sobre as ondas eletromagnéticas é saber se os efeitos “não térmicos” são prejudiciais à saúde. Esse é o caso das ondas de transmissão de dados sem fio, conhecidas como WI FI, e suas gerações (1G, 2G, 3G, 4G, 5G). Afinal, quando ficamos em frente ao roteador, não sentimos nosso corpo aquecendo (não há
efeito “térmico”), mas será que essas ondas que se propagam em nossa direção podem gerar algum efeito perverso?

A Organização Mundial de Saúde (OMS), com base em avaliações feitas por órgãos reguladores internacionais, em especial a International Commission on NonIonizing Radiation Protection (ICNIRP), considera que há “possíveis riscos” quanto a esses efeitos (IARC, 2011). No entanto, um relatório organizado por 29 cientistas reuniu quase 2.000 estudos que apontam os efeitos perversos das ondas eletromagnéticas “não térmicas” para a saúde humana (www.bioinitiative.org).3 Dentre desse vasto universo é possível destacar: alteração do eletroencefalograma, letargia, geração de prematuros, distúrbios do sono, distúrbios comportamentais, perda de memória recente, dificuldades de concentração, doenças neurodegenerativas, abortamento, má formação fetal, linfoma, leucemia, câncer, dentre outros (RODRIGUES; BRIZOLA, 2019; ADEY, 1996; CARLO, 1999; CHERRY, 2006; PHILLIPS, 1998; KUNDI; HUTTER, 2009; SAGE; CARPENTER, 2009; BIOINITIATIVE REPORT, 2007).

Dentre todos os efeitos nocivos, talvez o que mais vêm mais chamando a atenção é a possibilidade de quebra de sequências de DNA. Lixia et al. (2006) comprovaram isso em células foliculares de pêlos das orelhas com apenas 30 minutos de exposição à radiofrequência. Kesari et al. (2014) confirmaram o mesmo efeito em células do cristalino
do olho humano, com 30 minutos de exposição a aparelhos celulares 3G (AKDAG, 2018). Esse ataque ao DNA causa lesões nas bases nitrogenadas, mudando sua sequência e promovendo a ativação desorganizada da reprodução celular, situações que podem resultar na formação de tumores. Segundo a Agência Internacional de Pesquisas sobre o Câncer, cerca de 80% dos casos de câncer são causados por agentes químicos e físicos ambientais que alteram a composição das moléculas de DNA, responsáveis pelo controle reprodutivo das células (NAOUM, 2009).

No Brasil, merece destaque um estudo realizado em Belo Horizonte que demonstrou correlação significativa entre a incidência de neoplasias (causadoras de óbitos humanos) e a localização das antenas do sistema de telefonia celular da cidade. As maiores taxas de mortalidade por neoplasias na capital mineira, entre 1996 e 2006, foram encontradas dentro de um raio de até 500 metros de distância das Estações Radio Base (DODE 2011).

Os animais também sofrem com as ondas eletromagnéticas. Há fortes indícios de que o declínio mundial da população de abelhas esteja relacionado, entre outros efeitos, à radiação não ionizante. A radiofrequência reduz as habilidades de postura da rainha, levando a um declínio da estrutura e tamanho da colônia (VERSCHAEVE, 2014). No caso dos anfíbios, os efeitos nocivos da radiofrequência são conhecidos desde os anos 1990, provocando aumento no diâmetro de artérias, arritmia cardíaca e alergias. Estimase que mais de 30% desses animais encontram-se ameaçados, o que torna ainda mais
relevante a precaução para o equilíbrio da biodiversidade (KIESECKER et.al, 2001; BLAUSTEN, 2003).

É importante observar que esses estudos foram realizados dentro dos limites de exposição às ondas eletromagnéticas autorizados pelos órgãos reguladores. A grande preocupação é o fato de que a 5G irá representar um salto na forma de transmissão de dados sem fio. A estimativa da Associação Brasileira de Infraestrutura para as Telecomunicações (Abrintel) é de que sejam necessárias de três a quatro vezes mais antenas em relação à conexão 4G (ABRINTEL, 2020). Ou seja, se já há dúvidas com relação aos níveis atuais de exposição, será que vale a pena correr o risco de aumentálos? Não seria mais prudente, tendo em vista experimentos feitos em laboratório que já indicam danos potenciais da 5G (KOSTOFF et a., 2020), analisar melhor os efeitos dessa tecnologia, antes de tomar uma decisão?

Uma “porta giratória no controle da 5G

Muitos anos atrás, existia algo chamado “conflito de interesses”. Não mais, desconfio. Hoje todos nós banhamos no mesmo rio.
Gore Vidal
The Last Empire, p. 224.

O oncologista e professor na Örebro University Hospital, Lennart Hardell, é um dos pesquisadores que vêm se destacando nos estudos sobre os efeitos perversos das ondas eletromagnéticas (KHURANA et al, 2009; HARDELL; SAGE 2008; HARDELL
et al, 2007). Porém, nos últimos anos, o médico sueco decidiu ir além. No caminho aberto pela actor–network theory, ele passou a descrever os bastidores dos órgãos que controlam os riscos das ondas eletromagnéticas, revelando a “ciência e suas redes” nesse campo (HARDELL, 2017; HARDELL; NIBERG 2020).

As portas giratórias (revolving door) não são uma novidade. O vai e vêm dos cientistas, trabalhando hora nas empresas hora nos órgãos reguladoras, como sugere a epígrafe de Gore Vidal, parece ter se tornado uma constante.4 Em seus artigos, Hardell vêm denunciando a existência de conflitos de interesse em diversos órgãos, mas merece destaque a International Commission on Non-Ionizing Radiation Protection. A ICNIRP é uma organização não governamental (ONG), baseada na Alemanha, que possui estreitas ligações com a indústria. 5 Hardell e Carlberg (2020) mostram como seu fundador, Michael Repacholi, foi construindo uma forte colaboração entre a ONG e o órgão da OMS, EMF Project, responsável pelo controle dos riscos das ondas eletromagnéticas. Repacholi chegou a se tornar coordenador em ambas as instituições, abrindo as portas para que empresas dos setores elétrico, militar e de telecomunicações pudessem participar de diversos encontros e se tornar os principais financiadores do EMF Project. Como se não bastasse, ele chegou a atuar como representante de setores industriais, enquanto detinha o cargo no EMF Projetc. Repacholi se aposentou em 2006, mas continua ligado à ICNIRP (como presidente emérito) e indicou ao EMF Project uma engenheira que, assim como ele, é membro do ICNIRP e tem um forte histórico de ligações com o mundo empresarial. Esses conflitos de interesse não são os únicos problemas. Hardell e Carlberg (2020) denunciam também a “cartelização” que ocorre nos órgãos que decidem sobre os riscos ligados às ondas eletromagnéticas. Para dar apenas um exemplo, seis dos setes membros do órgão de controle da OMS são membros da ICNIRP, e diversos deles ainda fazem parte de outros órgãos europeus. Além disso, os critérios de escolha dos membros, tanto da OMS como da ICNIRP, não são transparentes, deixando de fora centenas de pesquisadores que não concordam com a classificação de risco defendida por eles (HARDELL; CARLBERG,
2020).

Diante desse cenário, que se torna ainda mais preocupante com o advento da 5G, diversas cidades ao redor do mundo vêm tomando iniciativas para limitar, proibir ou adiar novas linhas de transmissão de ondas eletromagnéticas. Na Austrália, os condados de Lathlain, Currumbin Valley, Sutherland Shire, Randwick e Victoria Park já se mobilizaram para pedir uma moratória da 5G, uma paralisação das emissões de licenças para a instalação de Estações Radio Base e uma elaboração de estudos aprofundados sobre os efeitos nocivos da radiofrequência (TOTT NEWS, 2019; RANDWICK CITY COUNCIL, 2019; THE LEADER, 2019).

Segundo a organização Ehtrust, ao menos 21 cidades ou regiões dos EUA discutem a criação de leis para restrição à instalação de antenas. Muitas dessas localidades estão cobrando altas taxas de recertificação, com o intuito de desestimular a proliferação de transmissão de ondas (www.ehtrust.org).

Em Genebra, após a instauração da 5G, diversas pessoas que moravam próximas às antenas relataram dores de cabeça, zumbidos no ouvido, problemas no coração etc. Uma matéria na revista L’Illustré (DAVID, 2019), colhendo o depoimento dos habitantes de um dos bairros atingidos, trouxe uma grande repercussão para o assunto. Houve então uma forte mobilização por parte da população e de alguns parlamentares, que resultou numa lei de moratória dessa nova tecnologia, por três anos, no Cantão de Genebra (UGOLINI, 2020). 6

Na Itália, merece destaque uma conferência, ocorrida na Câmara dos Deputados, envolvendo cientistas, profissionais de saúde, representantes de órgãos públicos, advogados e políticos, para debater sobre os riscos à saúde provenientes da telefonia móvel, em especial no que toca a 5G. Nesse contexto, mais de 14 administrações públicas já decretaram ou discutem a moratória por precaução à nova tecnologia (MARTUCCI, 2019).

Conclusão

Claro que vamos passar à 5G. Quero ser bem claro. A França é o país do Iluminismo. É o país da inovação. (…) Eu escuto muitas vozes surgindo para nos explicar que, para corrigir a complexidade dos problemas contemporâneos, é preciso voltar à lamparina à óleo. Eu não acredito no modelo amish. Não acredito que o modelo amish é capaz de resolver os desafios da ecologia contemporânea. Emmanuel Macron, discurso do 14 de setembro de 2020, France Relance – French Tech.

A declaração do presidente Macron, diante de uma centena de empresários do setor de tecnologia, foi recebida com entusiasmo. Afinal, um dia antes, cerca de 60 políticos, incluindo os prefeitos de Marselha e Lyon, publicaram um manifesto em favor da moratória da 5G, reivindicando um debate mais democrático sobre o assunto. Eles faziam eco à percepção de 98% das pessoas sorteadas que compuseram a Convenção Cidadã, minipúblico convocado pelo próprio Macron, e a 65% dos franceses que responderam a uma pesquisa de opinião (LAPARADE, 2020).

Essa situação na França ilustra os desafios da democratização da ciência. Não bastam a legitimidade de parte do campo de especialistas (com 400 assinaturas para um pedido de moratória), as denúncias de conflitos de interesse (nos órgãos reguladores), a manifestação de autoridades eleitas (prefeitos e parlamentares), o parecer de 150 cidadãos comuns que puderam refletir sobre o assunto (minipúblico) e a percepção espontânea de 65% da população em geral (pesquisa de opinião). Como sugeriu Walter Benjamin (1994), inspirado no quadro de Paul Klee, a tempestade do progresso sopra, empurrando o anjo da história…

Diante desse cenário, é preciso uma articulação intersetorial para se estabelecer um contraponto. Mais uma vez, não se trata de inviabilizar a efetivação da 5G (ou defender um modelo amish, como estereotipou o presidente Macron, referindo-se ao grupo religioso ultraconservador, contrário ao uso de tecnologias). A Internet das Coisas (Internet of Things – IoT), onde máquinas se comunicam com máquinas (Machine to Machine – M2M), representa um avanço enorme – em áreas como medicina, engenharia, transporte, segurança, comunicação… – e só será otimizada com a implementação dessa
nova tecnologia (FRENCH; SHIM, 2016). Mas é possível se valer do princípio da precaução e pedir um adiamento, até que as consequências possam ser melhor analisadas, possibilitando adequações no caso de comprovação dos efeitos perversos.7

No que toca o Brasil, um leilão para a exploração da 5G está previsto para 2021, com a expectativa de que seja uma das maiores ofertas de bandas de frequência no mundo (GOMES, 2020). A Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), responsável pelo procedimento, limita-se a seguir as diretrizes dos órgãos internacionais, sem colocar em pauta discussões sobre os riscos dessa nova tecnologia (ANATEL, 2020).

No entanto, há uma questão jurídica importante que poderá ser levantada, tendo em vista os precedentes nos casos envolvendo as Estações Rádio Base. Trata-se de saber se os municípios – sobretudo com base nos artigos 23, VI e 30, I, VII, da Constituição Federal – possuem competência para regulamentar sobre o assunto de forma autônoma. Nesse sentido, a jurisprudência do STF vem oscilando. Por um lado, no RE 925994 decidiu que “se insere no rol de competência dos municípios a edição de legislação sobre assuntos de interesse local, tal como o uso e a ocupação do solo urbano em seu território, o que abrange a disciplina sobre instalação de torres de telefonia”.8 Por outro, no RE 981825 decidiu de forma contrária, indicando que a competência é federal. O esclarecimento dessa questão é essencial para saber se são possíveis articulações no âmbito das municipalidades, tal como vêm ocorrendo em alguns países, para analisar melhor a pertinência da instauração da tecnologia 5G.9

Ainda no plano jurídico, diante de um campo científico regulador contaminado, é necessário que as Supremas Cortes avaliem o princípio da precaução, inserido na garantia fundamental do direito à saúde, sem que as vozes dos pesquisadores dissidentes sejam silenciadas. Nesse sentido, é importante lembrar a defesa que Peter Häberle faz da “abertura dos intérpretes da Constituição”. Para o autor alemão, que influenciou a criação das audiências públicas judiciais e do instituto do amicus curiae, o quadro normativo da Constituição abre um “campo de possibilidades” e cabe ao intérprete, na escolha dessas alternativas, levar em consideração a opinião pública esclarecida (pré-interpretes), formada pela a sociedade civil, pelos acadêmicos, pela imprensa etc. (HÄBERLE, 1997; 2003). Ou seja, enquanto a democratização da ciência não se torna uma realidade, a judicialização de questões envolvendo a “sociedade do risco” se apresenta como uma alternativa, desde que o campo do Direito esteja aberto à “reflexividade”.

Este debate sobre a 5G – e as próximas gerações da internet móvel – está apenas começando. Trata-se de um salto revolucionário, mas é preciso deixar claro que ele envolve uma “escolha de sociedade”. A ideia de democratização da ciência é criar mecanismos para que “todos” passam fazer parte das decisões. Outros dilemas, em especial envolvendo a biotecnologia, surgirão no campo científico. E há um velho ditado de sabedoria popular, “é melhor prevenir do que remediar”, que deveria fazer parte do caminho.

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1 Publicado em: DOUGLAS PRICE, Jorge Eduardo; LASMAR, Jorge; GONTIJO, Lucas (orgs.). Direito, Futuro e Risco: Ressignificação de Conceitos Jurídicos e Políticos. Belo Horizonte: D´Plácido, 2021.

2 Trata-se uma série de batalhas intelectuais nos anos 1980 e 1990 entre os “realistas” e “construtivistas” (“positivistas” e “anti-positivistas” ou “modernos e “pós-modernos”), que tratavam da natureza das teorias científicas. No capítulo mais famoso, o físico Alan Sokal publicou um artigo embuste (com invenções), na revista Social Text (de tendência pós-moderna) com o objetivo de denunciar as supostas debilidades dos seus adversários. Sokal, em seguida, anunciou a fraude num artigo, em Língua Franca, para mais tarde

publicar um livro, Impostures Intelectuelles, no qual atacava os filósofos e cientistas sociais “pósmodernos”, sendo Bruno Latour um dos principais alvos. Para uma das várias respostas de Latour, logo após a publicação do livro, cf. LATOUR (1997).

3 Somente em 2012 o Programa de Radiação da OMS começou uma revisão do Environmental Health Criteria (resolução normativa acerca dos efeitos das radiofrequências para a saúde humana), o que não ocorria desde 1993. Embora a data de conclusão desse processo estivesse prevista para 2016, o estudo foi interrompido, ficando paralisado até 2019. Ao ser retomando, o período de consulta pública foi muito curto, desencorajando diversos pesquisadores a participar. Vale destacar que o National Toxicology Program, ligado ao National Institute of Environmental Health Sciences, nos EUA, foi um dos órgãos que apresentou um parecer, mudando seu entendimento de “alguma evidencia” para “evidências claras”, no que toca a relação das ondas “não térmicas” com a incidência de câncer. Esse parecer foi ignorado pela OMS, que decidiu manter o paradigma de “possíveis riscos” (cf. https://microwavenews.com/news-center/time-cleanhouse).

4 Exemplo disso ocorreu recentemente com a OMS, no caso da gripe A/H1N1. Após a declaração de pandemia e dos alertas da OMS, diversos países passaram a comprar e estocar vacinas e antivirais, que depois se revelaram desnecessários. Uma investigação feita pelo periódico BMJ (antigo British Medical Journal) e pela Bureau of Investigative Journalism (associação sem fins lucrativos) revelou que os experts que estavam aconselhando a OMS tinhas ligações financeiras com empresas produtoras de vacinas e antivirais. De acordo com o editorial, publicado no BMJ, as empresas lucraram 7 bilhões de dólares com a aquisição desses produtos, posteriormente descartados pelos países adquirentes (GODLEE, 2010).

5 O conselho de ética do Karolinska Institute (instituto responsável pela escolha do prêmio Nobel de Medicina), analisando o caso de um professor de epidemiologia, declarou que ser membro da ICNIRP representa conflito de interesse em potencial e deve sempre ser revelado (HARDELL; CARLBERG, 2020).

6 Diversas outras localidades suíças vêm travando uma queda de braço com o governo para o estabelecimento de uma moratória. Na região de Vaud, chegou-se ao ponto de a população provocar explosões ou sabotagem de Estações Radio Bases, ligadas à 5G. (SEYDTAGHIA, 2019)

7 O cabo coaxial é uma alternativa para atingir maior velocidade e melhor qualidade na transferência de dados. Trata-se de uma tecnologia com fio de cobre de alta largura de banda ou banda larga, que pode transportar um amplo espectro de sinais de rádio analógicos (incluindo canais de televisão) ou transmitidos pelo ar, mas com melhor qualidade e menos interferência (SCHOECLE, 2018).

8 Nesse mesmo sentido, a Suprema Corte da África do Sul confirmou a autonomia da Cidade do Cabo para regular e controlar o uso da terra dentro das fronteiras municipais. O julgamento estabelece um precedente importante de que todos os provedores de serviços de telecomunicações, incluindo a Telkom estatal, devam obter a aprovação municipal antes de instalar antenas de telefone celular (EMFSA, 2020).

9 No Brasil, Porto Alegre foi precursora na regulamentação autônoma. Desde 1999, o município vem sistematizando regras para a instalação de antenas no âmbito municipal. Em 2014, após uma série de debates promovidos pela prefeitura, envolvendo diversos atores do poder público e da sociedade civil, foi sancionada a Lei 11.685, que mantinha uma restrição aos níveis de emissão das ondas eletromagnéticas em 10% dos índices permitidos pela lei federal para locais críticos como escolas, creches, hospitais e clínicas médicas. No entanto, essa lei, inovadora, acabou sendo revogada em 2018.